sábado, 20 de março de 2010

A fidelidade ao texto dramático

Roberto de Abreu
Novembro de 2004
Artigo 4

A fidelidade ao texto dramático

Todo processo de montagem duma encenação é polêmico. Os questionamentos, as crises, as problemáticas que são levantadas são constantes até que se consiga alcançar um denominador comum. O teatro é polissêmico por natureza, a começar pelo número de artistas e múltiplas mãos que elaboram um espetáculo teatral, portanto é completamente compreensível que seja difícil afinar num mesmo diapasão tantos instrumentos híbridos e heterogêneos. Uma das crises mais comuns diz respeito a uma pseudo e suspeita fidelidade, que se quer ou não, imprimir na relação entre a encenação e o texto dramático. Esta fidelidade é possível ou impraticável?
Diversos encenadores, tentam justificar esta ou aquela decisão de solução para cena, são fundamentadas em trechos ou passagens do texto, o que também acontece com os atores. Mas poderíamos questionar: estas justificativas dos encenadores são realmente fundamentadas no texto? Parecem estar mais ligadas às interpretações que tais indivíduos têm do texto que ao texto propriamente dito. Uma questão hermenêutica.
Poderíamos dizer, sim, que existe algo de essencial que é “permanente” num texto dramático, algo íntimo, indispensável, um “super objetivo” da obra. De resto temos apenas rasuras, ideais que poderão sempre ser contestados pelo encenador e pelos intérpretes. Portanto poderíamos falar que não é o texto o alicerce da encenação, mas as interpretações que encenadores, atores, cenógrafos, iluminadores (...) têm desta dramaturgia, é daí que parte uma montagem. E poderíamos dizer ainda que existe então uma dramaturgia que é própria da encenação, que pode ter “muito” ou “nada” do texto dramático de que se utiliza.
Outra curiosidade que pode ser levantada é: se o dramaturgo for o encenador de seu próprio texto, sua encenação será fiel ao texto? De certo que não, no máximo será fiel à forma como o dramaturgo consegue vislumbrar sua própria obra, e assim voltamos à primeira condição. Logo, assim que o autor “termina” sua obra ela é única e inacessível, e a partir daí, renasce, sempre que entra em contato com a recepção de um leitor mais ou menos leigo. Poderíamos aplicar este princípio ainda a qualquer obra de arte produzida. A obra de arte é o que foi feito ou o que é apreciado? Ela existe quando não há receptor?
O texto dramático estará sempre ocioso, a espera de uma trupe, de um elenco, de um encenador que lhe dê identidade e sopro de vida. Estará sempre à espera de uma montagem.

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