terça-feira, 8 de setembro de 2009

ÁGUA VIVA.

Para uma Clarice, uma cena clara
Durante o período de atividades no Colégio Estadual Deputado Manoel Novaes, não conseguimos aplicar integralmente a “Metodologia Espiral do Texto à Cena”, caminho metodólogico criado na pesquisa de 2004 e que estava sendo testado e posto em prática neste segundo ano de investigação. A metodologia é composta de seis passos ou momentos distintos e segue descrita abaixo segundo o relatório final da pesquisa IC 2004/2005, com orientação do professor Sérgio Farias.

MOMENTO I
Leitura Individual em casa (primeiro contato do educando com o texto daramático)

MOMENTO II
Leitura do texto dramático (livre leitura do texto entre os educandos)

MOMENTO III
Leitura Dramática do texto teatral para um público (envolve a divisão e elaboração de personagens, interferências com Luz e Trilha Sonora, apresentação em sala de espetáculo)

MOMENTO IV
Produção de Encenação com texto lido (montagem com signos cênicos do texto que está sendo estudado, também em sala de espetáculo e para um público)

MOMENTO V
Análise e conclusões do grupo como espectador de si mesmo (debate interno sobre a encenação, como espectadores, ainda que tenham sido os artistas da obra encenada. Elaboração de conclusões acertadas em debate)

MOMENTO VI
Produção de um outro texto dramático pelo grupo (este segundo texto parte do primeiro, e inclui as conclusões acertadas no debate sobre a recepção da encenação da obra anterior)
Por conta do calendário escolar, algumas dificuldades foram impostas de modo que a idéia de montar o texto "A história é uma istória(...)" de Millôr Fernandes deu lugar à construção da cena "Água Viva", um solo com texto de Clarice Lispector. A aluna que executou o solo foi Val. Segue abaixo uma análise sobre a aplicação do Metódo Espiral, criado pelo grupo de pesquisa, conjugado com a aplicação do Método de Análise Ativa, criação de Stanislavski, tendo como matriz guia a articulação da recepção com a expressão da arte.




Figura 5 - Val se prepara para começar mais um ensaio de seu solo.

MOMENTO I
Leitura Individual em casa

Assim que foi escolhido o texto de Clarice, com título de "Água Viva", fomos mais uma vez a campo, para trabalhar apenas com uma aluna, Valdimeire Nunes, 17 anos, concluinte do Ensino Médio em 2005, que pretende pleitear vaga para ingressar na Escola de Teatro da UFBA e seguir carreira como atriz. Num segundo encontro, após ter recebido e lido em casa o texto Val exercitou analisar ativamente o texto e disse:

“Ela procura respostas na questão de... por quê?... São os vários porquês da vida. Questiona com Deus o por quê de morrer”.

(Informação verbal)

Ao pedirmos que fossem eleitas 5 palavras do texto, Val elencou:

“Deus, Cruel, Alegria, Insulto, Porquê”.

(Informação verbal)

Neste primeiro momento já foi possível identificar palavras-força e princípios que o texto ofereceu para a leitora-artista, que a partir desta recepção vai fundamentar a expressão que desencadeará a montagem da cena. Um primeiro exercício de Análise Ativa (identificar palavras-força no texto, e tentar dizer o que o texto traduz) já oferecia elementos para a montagem da cena. Chegava ao fim a primeira e mais curta fase do caminho Metodólogico Espiral.

MOMENTO II
Leitura do texto dramático em grupo

Este segundo momento, também curto, consistiu em exercitar a leitura com a atriz-educanda-sujeito e o grupo de pesquisa. A proposta era que Val fizesse a leitura livre do texto para que o núcleo de pesquisa ouvisse. E a partir daí começamos a fazer experimentos pertinentes ao Método da Análise Ativa: traduzir o texto corporalmente (rendeu à montagem um repertório rico de partituras físicas); a elaboração de uma carta da personagem do texto (sugestão dada por Stanislavski em seus textos sobre o método); a redação de uma carta resposta de Deus para a personagem do texto; análise com improvisação do texto em cena quando o texto ainda não havia sido memorizado, entre outras atividades.
Esta fase do Método Espiral foi rica no que se refere a oferecer elementos, matéria-prima para a montagem da cena.

MOMENTO III
Leitura Dramática do texto ao público

Nesta fase já haviamos coletado bastante material para a cena, inclusive identificado juntos os subtextos, as mensagens subliminares para guiar a direção das inflexões que seriam dadas na interpretação. A criação da voz partiu de sentimentos que a própria Val atribuiu à personagem. A voz devia atender à dor, densidade, e amargura da revolta expressa pelas palavras do texto. A trilha sonora já estava definida, inclusive com os momentos em que as canções apareciam ao longo da cena. Com todos estes elementos fomos à Leitura Dramática realizada na escola de Teatro para alunos do curso de Licenciatura em Teatro. A receptividade contribuiu com a cena, os comentários foram muito enriquecedores e no discurso da platéia apareceram palavras como: angústia, conflito, caos, confusão, dor, desespero, comentários que renderam uma irrigação no imaginário tanto do grupo de pesquisa como em Val, intérprete da cena.

MOMENTO IV
Produção da Encenação do texto

A proposta da encenação do texto "Água Viva" foi concebida por nós, pois este plano de trabalho na equipe de bolsistas PIBIC, era o plano que continha a responsabilidade da encenação. Esta proposta parte do princípio de usar a recepção como inspiração para a expressão, a participação da atriz-criadora- sujeito da pesquisa é então, fundamental e necessária. O Metódo de Análise Ativa foi um instrumento determinante para a composição da cena.
Os princípios conceituais para a montagem eram: trabalho com partituras físicas para o desenvolvimento das marcas usando traduções físicas de metáforas, imagens do texto e palavras que traduzissem as idéias-força identificadas pela atriz; construção do "corpo" da personagem observando as caracterizações feitas por Clarice durante o texto e por Val durante o processo de coleta de material cênico; construção da voz da personagem numa exploração de timbres e registros que traduzissem os aspectos psicológicos da persona, aliada à composição de uma máscara biológica para caracterizar o semblante e a expressão neutra (ponto zero) que representa como se comportam as musculaturas faciais da personagem em cena. Todos estes elementos citados acima nortearam a direção de ator e composição da encenação.


Figura 6 - Val em cena. A montagem resultado foi representada no Seminário Interno de Pesquisa da Escola de Teatro e no projeto Ato de 4.

No palco uma lâmpada presa dentro de uma gaiola, sistema simbólico que representa o Deus do texto: iluminado e de trevas, repressor e reprimido. No chão um tapete branco permeado pelas palavras do texto escritas em preto. A caracterização da personagem... descalça, uma calça tipo pescador e uma bata, brancas, leves, limpas, puras; cabelos presos em trança, amarrados, atados em nó e uma maquiagem pesada com tons escurecidos, densos, ampliando os traços naturais do rosto da atriz. Estes conceitos foram concebidos e justificados durante os exercícios de Análise Ativa, em que a atriz expunha os seus Sentidos Expressos, sua opinião sobre o texto, o que oferecia elementos para a composição da encenação.
O processo de montagem durou um mês e meio, e a cena está pronta para ser apresentada nos mais diversos lugares.

MOMENTO V
Análise e conclusões da artista como espectadora de si mesma

Depois de realizada a estréia o Núcleo de Pesquisa em conjunto com Val fez a análise do processo como um todo e a partir das conclusões tiradas a tarefa foi construir um novo texto que tivesse como referência as conclusões que surgiram e não o texto encenado.

MOMENTO VI
Produção de um outro texto dramático

Para visualizar o processo de desenvolvimento da pesquisa, segue o texto "Água Viva" de Clarice Lispector, usado na encenação, bem como o texto "Não Diga..." de Valdimeire Nunes, produzido neste último momento da metodologia.

ÁGUA VIVA

Há palavras proibidas e eu corro perigo como toda pessoa que vive. Mas eu denuncio. Denuncio nossa fraqueza, denuncio nosso horror alucinante de morrer, e respondo a toda essa infâmia com alegria. Levíssima e puríssima alegria.
Não faz sentido? Pois tem que fazer! Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas. Porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres.
Eu apesar de tudo, estou sendo alegre neste instante, já, que passa se eu não fixá-lo com palavras. Estou sendo alegre nesse instante porque me recuso a ser vencido. Então eu amo. Como resposta. Amor impessoal é alegria: mesmo o amor que não dá certo. Mesmo o amor que termina.
Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe como, não se sabe quando, não se sabe onde. Vou ficar muito alegre, ouviu, Deus? Como insulto. Como resposta. Eu preciso entender isso enquanto estou vivo, porque depois será tarde demais.

O texto de Val não partiu exatamente de "Água Viva", e sim das conclusões tiradas sobre a recepção de Val acerca do seu próprio trabalho de encenação. Entretanto em grande medida um texto se conecta ao outro, como pode ser visto aqui. Como subtextos de “Água Viva”, Val identificou a angústia da personagem, a revolta que a faz discutir com Deus, críticas sociais e ideológicas. Val apresentava interesse particular pelo texto de Lispector o que fornecia elementos para desenvolver com maior paixão a sua composição da cena. O domínio afetivo mobilizando a expressão da arte. Através destas identificações de subtexto, recepção, Val construiu o seu texto. É o sistema recepção-expressão a que este plano de trabalho se prpunha investigar, comprovando que é possível usar a recepção para fomentar e fundamentar a expressão. Segue o texto:

NÃO DIGA...

Toda essa imensidão obscura e cruel não pode estar certa. A vida não se resume à morte (eu não aceito).
Não saber viver dói e ter como destino de todos a morte dói e, dói porque vivo e todos que vivem sofrem e sentem a dor...
Amar é uma dor, mas é dor diferente que motiva a gente a viver.
Viver é uma dor, mas é dor diferente que leva a gente a morrer.
Alegro-me em saber, pelo menos uma vez, ter amado, mesmo que o amor não tenha durado, mas dentro de mim levo uma marca por ter amado.
Eu não posso aceitar a maldade de Deus em ter nos dado a vida e querer nos levar dela.
Eu não aceito, viu, Deus?
Eu não posso, ouviu, Deus?
Eu não quero entender o porquê fazes isto com a comunidade. Saiba que não somos Fantoches. Eu não sou seu fantoche. E não vou morrer! Não diga... Eu não vou ouvir, mais uma vez, que é só você que pode. Pois saiba que o poder não é tudo, viu, Deus? Maior que o poder de fazer nascer ou fazer morrer, é o meu querer, a minha vontade de viver... E eu não vou te ouvir mais. Não vou cumprir as tuas ordens mais... Por que, Deus, és assim? Que Deus és tú? Não diga... Eu não vou ouvir.
Figura 7 - Ensaio da cena-resultado com Val para mostra, em cena os elementos trabalhados ao longo da pesquisa para a composição da encenação.

Fica clara a relação de um texto com o outro, as palavras recorrentes, a temática igual, a estrutura narrativa, a construção das questões, tudo. O texto de Val entretanto toca num ponto: o amor. Este elemento se difere do texto original e avança na discussão da personagem com Deus. No segundo texto a relação de discussão da personagem com Deus já se estabelece desde o primeiro momento, enquanto no fragmento do texto de Clarice, isso não acontece. Nossa hipótese foi testada. Com o Método Espiral para inclusão do texto à aula de Teatro-educação, é possível sim estabelecer em aula um estudo mais aprofundado do texto, principalmente se este estudo estiver aliado ao Método de Análise Ativa que tão bem instrumentaliza os educandos no sentido de criar uma autonomia crítica e fundamentar caminhos de análise do texto-mundo, conclusões tiradas pelos próprios alunos que passarão pelo processo e principalmente por Val que pôde vivenciar a passagem pelas seis fases do Método.

“Pra mim foi muito importante. Tô observando mais o meu corpo, as coisas na rua, na vida, coisas que eu não percebia e tô passando a perceber. Exercitar essa cena mexeu muito comigo, com minha cabeça. Muito bom!”.


Valdimeire Nunes

Um comentário:

  1. Nossa, eu pensei que nunca teria contato com esse trabalho... depois de seis anos aparece, assim na minha frente! Sim, o método foi muito bom, e hoje formanda da Licenciatura em Teatro, pela Escola de Teatro da Ufba, aplico esse método com meus alunos nas salas de aula, juntamente com o Teatro da Espontaneidade de Moreno.
    Obrigada Roberto de Abreu por ter me escolhido!

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