quinta-feira, 29 de julho de 2010

A mit-disciplinaridade como desafio para os profissionais de arte e educação na contemporaneidade

Sergio Coelho Borges Farias

Instituto de Humanidades, Artes e Ciências

Universidade Federal da Bahia

Julho 2010

Um dos desafios que se apresentam para os que se situam no campo profissional da arte-educação (e nesse sentido estou me referindo às artes de modo geral, as visuais, audiovisuais, teatrais, corporais, performáticas, circenses, musicais...) é a forma de definir e de lidar com a mit-disciplinaridade.

Embora vivamos, no cotidiano, essa coisa, já que na vida tudo está ou pode estar relacionado, cada vez que se fala nessa coisa, sempre alguém ressalta que “precisamos definir isso que se chama de mit-disciplinaridade...”.

Como reconheço a dificuldade em compreender esse conceito, e essa dificuldade pode ser, inclusive, uma resistência intuitiva a romper os muros que separam as disciplinas, gosto de partir da definição simplificada de: disciplina, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade, para chegar finalmente à idéia de percurso mit-disciplinar.

As disciplinas, ou campos de saberes, ou áreas de conhecimento, foram se constituindo ao longo da história da humanidade, inclusive no sentido de organizar uma quantidade cada vez maior de informações e de permitir um maior aprofundamento em cada campo do saber.

Cabe aqui uma referência a Michel Maffesoli, que se refere à profundeza das aparências e ao valor do conhecimento comum para chamar atenção para a riqueza dos elementos, que parecem ser superficiais, banais, ou apenas aparentes, mas que podem se constituir como componentes importantes dos processos de pesquisa.

Já há algum tempo a filosofia da ciência e, consequentemente, a metodologia de pesquisa abriram espaço para as chamadas abordagens (mais) qualitativas.

As alterações no modo de ver a pesquisa, com o reconhecimento das articulações entre os vários elementos constituintes do objeto de estudo, vistos sob várias e diversas perspectivas, implicaram na elaboração de conceitos como os de complexidade e de multi-referencialidade. Ambos os conceitos podem também ser tomados como bases para o reconhecimento da necessidade da mit-disciplinaridade.

Sendo todo objeto complexo, como abordá-lo com referências exclusivas de um só campo de estudo?

Como estudar um objeto em sua completude, tendo que recortá-lo para caber numa disciplina?

Como recorrer a múltiplas referências sem percorrer múltiplos campos de saber?

Ao pensarmos nesses temas e questões mencionados acima, começa a parecer mesmo um contra-senso essa separação rígida entre as variadas formas ou linguagens ou modalidades das artes, assim como entre as artes e os demais campos ou áreas, sejam elas do grupo das humanidades ou das ciências.

A cena sempre se constituiu como locus privilegiado para a integração das artes, podendo ali aparecer, reunidos e articulados: a palavra, o corpo, o som, o objeto, a tecnologia, expressos através do texto, da interpretação, da dança, dos elementos plásticos e audiovisuais, da música.

Cabe, entretanto, ressaltar a importância do avanço do conhecimento científico que resulta do aprofundamento em determinados campos específicos. Sabemos que as verdades ou certezas se constituem através de processos organizados de produção de conhecimento, mas sabemos também que elas são verdades, de acordo com determinados princípios e valores.

Retomando a questão da configuração das disciplinas, que vem de longo tempo, pode-se dizer que a mesma foi acentuada com a fundação da ciência, com a prevalência do racionalismo e todos os seus desdobramentos, como o iluminismo, cientificismo, positivismo... já que o livre pensar articulado dos filósofos/matemáticos/artistas gregos, por exemplo, derivou para a busca de apropriação de uma verdade pré-existente, comprovada, definida, com uma precisão baseada em medições, cálculos, comparações, afirmações positivas, dentro de cada área de conhecimento. Não é fácil, imerso no racionalismo, compreender e aceitar que possam ter convivido harmoniosamente coisas tão distanciadas atualmente como a filosofia e a matemática.

Atualmente a tabela do CNPq para a classificação das produções acadêmicas contém mais de 1400 sub-áreas catalogadas, agrupadas em áreas e grandes áreas. Por ocasião de uma tentativa de um dirigente do órgão, por volta de 2005, de reestruturar as áreas, extinguindo, agrupando ou ampliando as sub-áreas ocorreu um grande alvoroço entre os pesquisadores, cada qual tentando incluir ou manter seu pedaço, sua especialidade. Cabe assinalar que a distribuição dos recursos

financeiros para a pesquisa leva em conta essa organização em áreas.

Como as delimitações dos campos do saber perderam sua rigidez na prática, a cada dia novos campos de conhecimento vão se configurando, com cada campo interdisciplinar se constituindo como nova “disciplina”, o que poderia (poderá) levar a tal tabela do CNPq a apresentar milhares de especialidades dentro em breve.

Mas o que nos interessa aqui, no momento, é a definição descomplicada daqueles termos anunciados no início do presente texto. Então comecemos com a multi-disciplinaridade, que pode ser vista como a utilização de conceitos, fundamentos, bases filosóficas, procedimentos e recursos de várias disciplinas numa articulação de saberes diferenciados e supostamente independentes. Ao se estudar um fenômeno referente ao meio ambiente, utiliza-se elementos da Química, da Biologia, da Economia, da Geografia e assim por diante.

No caso da interdisciplinaridade, os elementos de duas ou mais disciplinas são misturados, numa espécie de amálgama, havendo dificuldade de se definir de qual disciplina cada qual foi retirado como é o caso dos estudos sobre a ecologia, a contemporaneidade, as relações internacionais, o imaginário, o gênero, a energia, a estética. É nesse sentido, pela dificuldade de classificar esses campos configurados mais recentemente que as abordagens interdisciplinares podem acabar se constituindo como novas disciplinas.

Finalmente chegamos ao “T”. A transdisciplinaridade seria, então, o livre trânsito entre os vários campos do saber, como se não existissem as fronteiras e os territórios que dão nome às especialidades, sejam elas disciplinares ou interdisciplinares. É claro que isso exige um desprendimento, um desapego às bases já constituídas, e isso requer uma mudança de mentalidade em relação à segmentação dos processos de composição do conhecimento.

A mit-disciplinaridade, sendo o conjunto das várias abordagens (multi-inter-trans) descritas acima, não implica, portanto, na extinção das disciplinas, mas num novo olhar sobre as mesmas.

As proposições da física quântica influindo nas correntes mais recentes da filosofia contemporânea, e vice-versa, apontam para uma reversão do cientificismo, da hiper-racionalidade, retomando e valorizando nos processos de produção de conhecimentos, além do pensamento, outras habilidades humanas fundamentais, como as sensações, os sentimentos e a intuição.

A chamada pós-modernidade abre espaço para que a sistematização do saber passe da opção (racional) entre isso ou aquilo, para isso e aquilo, como na física quântica. A intensificação do saber passa de uma forma de raiz (aprofundamento) para uma forma de rede (articulação de saberes).

Tal postura filosófica repercute no meio artístico, com a opção pela forma híbrida evento performático em vez de peça teatral, concerto, exposição ou coreografia, embora todas essas formas continuem existindo e emocionando públicos os mais variados.

As mudanças na disposição espacial dos espetáculos, com a diluição da diferença entre palco e platéia e a retomada da natureza ritual da arte, com envolvimento direto do público, favoreceram a idéia do evento performático como expressão cênica transdisciplinar, em sintonia com as idéias características da chamada pós-modernidade.

O desafio para o artista e educador, nas oficinas, nos quadros curriculares, nos trabalhos de ação cultural, é aplicar essa nova perspectiva na sua vivência, sem descartar o conhecimento acumulado em termos de arte, de pedagogia, de autonomia, de contexto, de crítica, de memória, de subjetividade, com a possibilidade legítima de aprofundamento num campo específico e recortado, mas de olho no entorno, no mundo todo, de olho também nas superfícies, nas aparências.

Um comentário:

  1. Professor, você já está fazendo parte de uma reforma importantíssima para o crescimento do país. Layout de ensino como esse é posto em prática em países desenvolvidos. Então me pergunto, Porque ficar para trás? Será que iremos perder Três anos de nossas vidas? Uma Coisa que aprendi com o BI é que nenhum conhecimento é dispensável, mas infelizmente não podemos saber de tudo aprofundadamente. Então, por que não ter, ao menos, uma base dos conhecimentos de outras áreas do saber? Poderemos usar desse conhecimento grandioso em pró da nossa especialidade, sendo assim, um profissional capaz de lidar com dificuldades diversas.
    Sem mais, me sinto orgulhoso de participar de um projeto extremamente importante para o país.
    Agradecido,
    Leandro S. de Almeida – Aluno BI de C&T 2011.1

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