quinta-feira, 29 de julho de 2010

O exercício da intuição na composição da cena

Sergio Coelho Borges Farias

Comunicação Oral

Universidade Federal da Bahia

GT Pedagogia do Teatro e Teatro na Educação

Palavras-chave: Teatro, Improvisação, Taxonomia, Domínio Estético, Avaliação, Intuição

A questão da avaliação continua sendo assunto complicado para a maioria dos educadores dedicados ao ensino de arte, já que o mesmo envolve as capacidades de sensação, sentimento e intuição, tanto quanto aquelas baseadas no pensamento, que em geral focalizam prioritariamente a atividade mental, o raciocínio, a memória, a lógica.

As aulas de Arte, em geral, retiram o estudante da carteira e o liberam de uma forma rígida fazendo o corpo circular mais livremente no espaço de aprendizagem, para ser desenvolvido, na medida do possível, de maneira integral.

O educador é formado geralmente para desenvolver junto ao estudante apenas o campo cognitivo, promovendo o conhecimento e desenvolvendo habilidades intelectuais como a compreensão, a aplicação dos conhecimentos para resolver problemas, a análise, a síntese e a avaliação. Entretanto, nas atividades das aulas de teatro, o domínio psicomotor é tratado nos seus diversos estágios, desde a percepção até o domínio completo de movimentos, passando pelo posicionamento no espaço, pela execução acompanhada e pela mecanização. Essa mecanização é uma etapa importante para se chegar a uma despreocupação com a execução técnica nos trabalhos corporais, permitindo uma maior fluência das ações criativas deflagradas a partir da intuição, daí a importância das técnicas corporais e dos ensaios. No domínio psicomotor os órgãos dos sentidos jogam papel relevante. A visão, a audição e o tato, especialmente, são mecanismos fundamentais para a comunicação grupal e para a composição da poética da cena. As sensações provocadas pelo toque, por exemplo, seja em relação a objetos ou em relação a outros corpos, são determinantes para o alcance pleno da categoria inicial do domínio psicomotor, que é a percepção.

Outro domínio presente de maneira acentuada nas aulas de arte é o afetivo. As atitudes indispensáveis para a comunicação e para a formação de uma visão de mundo, ou de uma filosofia de vida, são exercitadas nas atividades artísticas, tanto na criação, quanto na apreciação e contextualização da obra de arte. O ponto de partida para o trabalho com o domínio afetivo está na receptividade do participante, ou seja, no ato de prestar atenção ao que acontece no ambiente em que se encontra. O exercício do diálogo e da criação em contexto grupal depende dessa habilidade básica. Por isso, respostas aos estímulos apresentados pelo educador e pelos colegas só aparecem se o participante garantir a sua presença na cena educativa. Assim é possível ao educador verificar a coerência e a pertinência dessas respostas e dar andamento ao plano de ensino, indicando tarefas, avaliando os trabalhos apresentados, cuidando do aperfeiçoamento da aprendizagem com a progressão gradual do grau de complexidade das tarefas. A atribuição de valores às próprias respostas que emite e a organização de um sistema de valores por parte do estudante, são também etapas fundamentais para uma caracterização do sujeito do processo educativo. Dizer sim, ou não, ou talvez, ou ainda depende a uma questão que lhe é apresentada requer do estudante a receptividade (daí o grande valor de saber ouvir os seus interlocutores) e requer a emissão de respostas, devidamente valoradas e assumidas, aos estímulos do ambiente. Evidentemente, num processo educativo dialógico, esses estímulos não vêm somente da parte do educador, mas de todo o grupo.

No ensino de teatro, as emoções também aparecem como fatores importantes, já que estão presentes na vida dos personagens e dos atores ao viverem as diversas situações cênicas. As emoções básicas (alegria, tristeza, amor, raiva e medo) e os sentimentos resultantes de suas combinações (nojo, piedade, nostalgia, vergonha, saudade etc.), vivenciadas no ambiente educativo, tornam peculiar o ensino de teatro, aumentando a complexidade da sua avaliação, tanto para o acompanhamento cotidiano das tarefas didáticas, quanto para a valoração global da aprendizagem, com atribuição de conceito ou nota.

Mas não é somente no campo da sensação e do sentimento que residem as maiores dificuldades para se avaliar a aprendizagem em arte. A intuição aparece como a capacidade humana mais misteriosa, menos abordada, mesmo sendo amplamente exercitada nos processos de criação. Impressões instantâneas, percebidas em poucos segundos, ou até mesmo em frações de segundos, indicam uma saída para um impasse ou alertam para um perigo ou indicam pistas para contornar uma situação difícil. O que é isso, de onde vem, como acontece?

Chamada de insight por uns e de sexto sentido por outros, a intuição é vista como o conhecimento que surge sem o uso da lógica ou da razão. Ela acontece em forma de sonhos, de visões, de sensações corporais ou de atos criativos. Ela está também bastante ativada nas ações de improvisação presentes no fazer teatral.

Num piscar de olhos, tem-se a sensação de pensar sem refletir, sem raciocinar, sem tentar prever as conseqüências, ou seja, de pensar sem pensar. Para alguns, o acontecimento parece ser apenas fruto da imaginação, mas se avançarmos mais na tentativa de compreensão da coisa, parece razoável considerarmos que naquele instante algo foi buscado na memória, foi articulado com os padrões registrados no corpo/mente e se expandiu para atingir os mecanismos de comunicação. A leitura veloz dos padrões permite ao indivíduo resolver problemas através de impulsos e até mesmo fazer antecipações do que é mais provável acontecer. Surgem assim os pressentimentos. Mas somente com a comunicação é que a coisa, que se situa no campo da estética, pode ser incluída em pauta, para ser trabalhada educacionalmente, para ser desenvolvida e integrada aos demais domínios de aprendizagem.

As primeiras impressões podem ser muito reveladoras, mas quem costuma agir com preconceitos pode intuir mal. Estar atento aos pequenos detalhes também faz muita diferença. Para Carl Gustav Jung, um ser intuitivo é imaginativo e visionário, observa o entorno holisticamente e confia nos pressentimentos. Tudo indica também que momentos de silêncio, para aquietar o corpo e reduzir a velocidade das emoções e do pensamento podem ajudar a ativar a intuição. Ter em mente as questões que devem ser resolvidas, abrir todos os canais dos sentidos (já que muitas vezes um insight aparece através de um sinal corporal físico) e trabalhar em grupo são também formas de propiciar a visão e a liderança intuitivas. Não é fácil reverter os condicionamentos que levam à supervalorização do pensamento em detrimento das outras três capacidades humanas, anunciadas por Jung – sensação, sentimento e intuição. É necessário promover um redimensionamento dos costumes, para abrir espaço a novas idéias, à aceitação do que vier à cabeça. É preciso desligar-se, estabelecer tempos livres nas agendas e cultivar a alegria, pois parece que tudo funciona melhor quando se está feliz.

Para intensificar a capacidade de intuição alguns especialistas recomendam dar um descanso à lógica, deixar de lado a mania de querer provar, pedindo à razão para sair de férias. Isso procede. Nos processos criativos, os indivíduos que apresentam autocrítica acentuada, ou que se revelam como pessoas muito racionais, possuem mais dificuldade para deixar fluir a imaginação, para exercer a espontaneidade, para ser criativo, enfim para entrar no jogo da improvisação. Num exercício de improvisação não há tempo longo para refletir, analisar, comparar ou calcular. As respostas têm que vir num impulso, digamos assim. As operações sensoriais, mentais e emocionais precisam ocorrer em grande velocidade, para que aconteça a contracena, o bate-bola entre os atores. Um ator improvisando deve, portanto, tanto quanto possível, intuir as ações dos demais companheiros de cena. Isso não ocorre somente com o ator. O que faz o trapezista que se lança no espaço chegar na hora certa para ser segurado pelo companheiro não é somente o raciocínio sobre a ação, o sentimento de amor ao trabalho, o medo de cair, a medida da distância que percorre, ou o cálculo da força necessária para pular. No momento do salto isso tudo já deve estar presente no indivíduo e sistematizado em padrões, para que apareça o impulso necessário à ação desejada. O mesmo ocorre com o atleta, com o motorista, com o goleiro. Mas como avaliar uma aprendizagem que resulta de algo que não se explica?

No teatro, os laboratórios, as análises textuais e os ensaios resultam na composição de padrões no repertório do ator, que servem de base para a intuição nas ações cênicas e favorecem a criatividade. No momento do salto, no trapézio ou na cena, não é a quantidade de informações que garante um bom resultado, é a capacidade de identificar rapidamente o que de fato importa. Diante de um problema ou de uma inquietação, uma enorme quantidade de informações armazenadas é acionada e é preciso escolher com precisão as que são relevantes.

Cabe sempre ressaltar que assim como as separações entre áreas de saber (Filosofia, Ciência, Arte e Religião) e entre as centenas de disciplinas, a divisão em domínios de aprendizagem (cognitivo, psicomotor, afetivo e estético) é um artifício para o aprofundamento e a organização dos estudos. A aprendizagem de qualquer matéria ocorre com o envolvimento de todo o corpo, ou seja, do indivíduo em sua inteireza, e nos diversos domínios, ao mesmo tempo. Pode-se, contudo, perceber a predominância de alguns deles em certas situações, e é por isso que foram formuladas as taxonomias e as tabelas de áreas de conhecimento.

Sendo assim, o desenvolvimento do senso estético, com seus mecanismos de aprendizagem, presentes nos exercícios de criação artística, merece também uma taxonomia que focalize principalmente a intuição. As taxonomias do domínio cognitivo (foco no pensamento), do domínio psicomotor (foco na sensação) e do domínio afetivo (foco no sentimento), abrangem três das principais capacidades humanas, e já foram explicitadas neste texto. Falta então uma taxonomia do domínio estético, com foco na intuição. Apresento, a seguir, uma proposta de seqüência de categorias ou estágios, com grau crescente de complexidade, para o domínio estético da aprendizagem: toque, imaginação, transcendência, apreciação e incorporação.

A aprendizagem no campo estético começa, a meu ver, pelo toque. Se o ator da experiência estética realiza a dilatação e a irradiação e entra em sintonia com o apreciador da obra, através de uma pulsação harmoniosa, inicia-se um processo de empatia. Tocado pela obra, e em sintonia com a mesma, o sujeito deflagra um processo de imaginação. A formação de imagens acompanhadas da linguagem tem inicialmente como fonte geradora a memória, e tem, portanto, como matéria prima o que está retido no corpo em códigos mentais e sensoriais. A ampliação dessa imaginação leva então à transcendência. Articulando os elementos de sua história de vida e de sua visão de mundo com as imagens oferecidas e provocadas pela obra, o sujeito vai além do que já se encontra inscrito em seu universo interior, criando situações próprias, prazerosas ou não. O exercício do prazer estético nos seus variados graus resulta da apreciação, que é o que se segue às etapas de ser tocado pela obra, imaginar, e transcender. Finalmente o sujeito promove a incorporação do que foi vivenciado ao seu repertório mental, sensorial, emocional. A aprendizagem no campo estético resulta, estão, no aumento da complexidade da capacidade intuitiva. Voltando à nossa questão inicial, como avaliar esse tipo de aprendizagem?

A avaliação da aprendizagem no domínio estético deve ser complementada, evidentemente pela avaliação do desempenho em cada um dos outros domínios, com critérios e instrumentais específicos. No caso das ações criativas, resultantes de processos mais intuitivos, parece ser mais indicado usar também a intuição na avaliação do desempenho dos estudantes pelo educador e pelos colegas, através do procedimento da auto-avaliação, depois de conversar sobre tudo isso com o grupo. Além disso, a avaliação realizada de forma contínua e cooperativa, numa perspectiva formativa, permite que a auto-avaliação de cada estudante seja enriquecida com as observações do educador e dos colegas. Perguntar é muito importante na avaliação da aprendizagem em arte; impulsiona a criação, provoca a revelação do que foi aprendido, permitindo ao educador verificar o possível impacto ocorrido na formação.

Nesses termos, é preciso considerar que conhecimentos em literatura dramática, teoria ou história do teatro, por exemplo, podem ser avaliados mais objetivamente. Se um aluno responde num exercício que a tragédia grega Antígona foi escrita em Verona na Idade Média, ou que o distanciamento foi proposto e praticado por Molière, grande autor do movimento modernista, é possível dizer que ele está errado. Porém, se numa improvisação o estudante está jogando de acordo com a proposta do exercício, está contracenando adequadamente, e depois de ouvir uma declaração de amor ele, por exemplo, diz apenas que vai dormir, ele pode ter toda razão; quer dizer, toda intuição...

Referências

FARIAS, Sergio Coelho Borges. A arte e o domínio afetivo na educação. In FARIAS, Sergio e Matos, Lúcia (Orgs.). Arte e Educação. Coletâneas PPGE, n. 1, Salvador: PPGE Ufba, jan. 1999.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. RJ: Nova Fronteira, 1997.

RODRIGUES JÚNIOR, José Florêncio. A taxonomia de objetivos educacionais. Brasília: Ed. UnB, 1997.

SPOLIN. Viola. Improvisação para o teatro. SP: Perspectiva, 1982.






















Um comentário:

  1. Esta é uma grande provocação.O domínio intuitivo e ator, os dois podem se configurar em mensagem. então em processo irei pesquisar: O ator é a mensagem.

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